Retomo hoje o tema que, sob o título genérico “Vêm aí os chineses…” tenho vindo a publicar, a partir de pequenas transcrições do livro “O Século Chinês”, do jornalista Federico Rampani, correspondente em Beijing do jornal italiano La Repubblica. Em face da clareza da exposição de Rampani, na maior parte dos casos dispenso-me de quaisquer comentários, por achá-los desnecessários e as afirmações do jornalista condizerem, de forma que me surpreendeu desde o início, com muito do que pude ver em recente visita que fiz à China e em que a percorri de Norte a sul, de Pequim a Macau, passando por Xi’an, Shangai, Guilin e Hong Kong, para só referir os pontos mais importantes.
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Dessa viagem começara mesmo a fazer alguns relatos, quando deparei com o livro de Rampani, que me levou a suspender o que tinha vindo a fazer e a enveredar por este meio, dado que o que vira estava em perfeita sintonia com o que ele descreve, com a vantagem de a narração dele ser mais rica e conhecedora, uma vez que vive em Pequim há muitos anos. Mas sigamos F. Rampini.
«Já morei em Los Angeles e em Paris. Hoje em dia não me restam dúvidas: o centro do mundo deslocou-se aqui para Xangai», declara Liu Tao, que, para os ocidentais, americaniza o seu próprio nome para Teddy Liu. Vinte e oito anos, jornalista do_JiefangDaily, Liu apresenta os traços típicos da nova classe média urbana que tem vindo a mudar a história da China: é casado com uma mulher que trabalha para um banco de investimentos, tem um Chevrolet desportivo, faz as compras no hipermercado francês Carrefour e possui o orgulho característico do xangaiense, cidadão duma metrópole de 20 milhões de habitantes que no século XXI, de acordo com a revista Time, assumirá o papel que pertenceu a Nova Iorque no século que há pouco deixámos para trás. (…) não é difícil acreditar naquela profecia.
Em nosso redor, a Nova lorque da Ásia já ultrapassou em audácia o modelo original. O bairro de escritórios de Pudong, com os seus 4 milhões de metros quadrados de espectaculares arranha-céus erguidos em apenas dez anos, faz com que os Estados Unidos pareçam um continente antigo. Os próprios americanos parecem estar subjugados pelo fascínio deste desafio: na revista de moda do The New York Times, Qi Qi, a Linda Evangelista chinesa, exibe as novas colecções tendo por fundo as paisagens futuristas de Pudong. O The Wal! Streetjournal intitula um suplemento turístico «Shanghai Chic», apresentando uma lista dos hotéis de cinco estrelas recentemente inaugurados: Marriott, Four Seasons, Ritz-Carlton, St. Regis.
Armani, Bulgari, Louis Vuitton, Rolls-Royce: nenhuma marca de luxo se pode permitir não ter lojas em Xangai, e a Universal Studios, para aproveitar o afluxo de turistas do mundo inteiro, constrói aqui uma réplica do seu parque de atracções de Hollywood.
Nas horas de ponta, os Audis (e os Mercedes e os BMW e os Buicks e os Chrisler e os Toyota que nem sonhamos, acrescento eu) substituíram prontamente as bicicletas em engarrafamentos asfixiantes nas grandes artérias metropolitanas, de tal forma que a cidade tem de limitar o tráfego com soluções audazes: as novas matrículas são levadas a leilão. À velocidade de um raio, Xangai obliterou décadas de austeridade comunista (…) É em Pudong que se situa o hotel mais alto do planeta, os maiores grandes armazéns, a torre de televisão mais elevada, o combóio mais rápido. O objectivo é ultrapassar o mundo, isto é, a América.
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De 1990 até hoje, em paralelo com a explosão do capitalismo, os nascimentos sofreram um decréscimo de 30 por cento. Trata-se em parte de uma reacção que reflecte o estilo de vida dos pais, que a política do filho único tornou excessivamente protectores: demasiados sacrifícios, demasiada dedicação ao precioso descendente. Em simultâneo, este fenómeno constitui uma outra face do afastamento da vida política que acompanhou a descolagem dos anos 90 que se seguiu à repressão de inúmeros estudantes na praça Tienanmen. Liu é a prova disso. “Anteriormente era jornalista político, agora prefiro escrever sobre negócios. É mais emocionante. Estou convencido de que esta mudança de interesses também é partilhada pelos meus contemporâneos.»
«Entre os meus colaboradores encontram-se muitos rapazes da geração que atingiu a idade adulta depois de Tienanmen», confirma Victor Ho, um advogado de negócios de Xangai que regressou à pátria depois de passar vários anos a trabalhar em Hong Kong. «Uma geração de individualistas, de hedonistas: desejam alcançar o mais depressa possível um maior bem-estar material.» O economista Liu Xen, da Universidade de Xangai, considera os seus alunos «eivados dum cinismo profundo. Desde os 10 anos de idade que estudaram nos manuais de propaganda, quando chegaram aos 18, perceberam que é tudo falso e não acreditam em nada: não lêem nada, querem apenas um diploma, dinheiro, uma carreira.»
Na Xangai de hoje, competitiva e ambiciosa, criar um filho custa caro, sobretudo se este filho tem de ser um «vencedor». A escola pública não garante um futuro coroado de êxitos, e assim explode o negócio das instituições privadas que oferecem professores de língua-mãe inglesa e cursos intensivos de matemática desde a mais tenra infância para preparar os futuros candidatos aos mestrados das universidades norte-americanas. (…)
A disparidade entre as duas Xangai, a de Armani e a dos assalariados rurais, permite medir a distância até agora percorrida pela China. Ainda vinte anos atrás, este era um país austero que racionava os bens de consumo, mas que se podia gabar dum dos níveis de desigualdades sociais mais baixos do mundo. (…) «Hoje em dia, o capitalismo é a única resposta à nossa necessidade de desenvolvimento, que ainda é muito forte», afirma o economista Liu Xin. «Pensar que a equidade social poderia ter prioridade enquanto éramos um país pobre à espera da descolagem seria um erro. Mas a China de hoje continua prisioneira duma espécie de ilusão marxista, ou seja, de que a economia é omnipotente, que o desenvolvimento tudo cura e soluciona. Assim, passámos do totalitarismo comunista a um capitalismo de tipo autoritário baseado no modelo de Singapura. (...) Por agora, mantêm-se as tréguas entre as duas Xangai: a Xangai do Grande Prémio de Fórmula Um, dos yuppies sem filhos e dos colégios bilingues e a Xangai das jovens criadas vindas de longe: com cem euros de salário mensal, os 3 milhões de trabalhadores imigrados do interior do país conseguem ainda poupar para enviar uma ajuda para casa. Para os familiares que ficaram no campo, aquele cheque que chega da remota Xangai constitui o eco longínquo da nova riqueza chinesa.
(…)
(continua)
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