Os portugueses têm de salvar-se de si próprios, para salvarem Portugal

domingo, 4 de março de 2007

922. Vêm aí os chineses… (9) – Revisionismo histórico e saudosismos imperialistas

Adivinhem quem circum-navegou o globo oitenta e sete anos antes de Colombo e cento e catorze anos antes de Magalhães?», pergunta-se num site da Internet da agência noticiosa estatal Xinhuanet.
Resposta certa: «O almirante chinês Zheng He explorou o Ocidente em sete viagens realizadas entre 1405 e 1433, percorrendo 50000 quilómetros e visitando 37 nações». No final do Verão de 2004, mal se extinguira o eco dos festejos pelas vitórias olímpicas dos seus atletas em Atenas (a China ficou em segundo lugar atrás dos Estados Unidos), quando o governo de Pequim lança nos meios de comunicação social oficiais uma celebração anti-Colombo. Trata-se duma tentativa ambiciosa de reescrever uma história oficial demasiado eurocêntrica e, em simultâneo, de legitimar a nova vocação como superpotência a nível planetário demonstrada pela China.
A grande ofensiva contra os recordes do navegador genovês foi desencadeada pela entrada em campo pelo ministro da Informação,Xu Zuyuan: «O governo chinês atribui grande importância às comemorações dos seiscentos anos das viagens de Zheng He ao Ocidente». Xu dirige uma comissão governamental composta por quinze ministros, desde os Negócios Estrangeiros às Finanças, mobilizados para repararem as injustiças cometidas pelos historiadores ocidentais. Sucedem-se conferências e exposições, suplementos especiais nos jornais e concursos com prémios para comemorar a proeza. A televisão pública começa a transmitir uma série em episódios dedicada às façanhas do lendário almirante.
(…)
A importância desta personagem, na verdade, há tempos que também é conhecida no Ocidente. A mando do imperador Cheng Zu, uma frota de dimensões sem par no mundo zarpou em Julho de 1405 do porto de Suzhou, a «Veneza chinesa», próximo de Xangai. A sua missão oficial era o estreitamento de laços com países longínquos e a expansão do comércio de produtos chineses. Era comandada pelo eunuco imperial Zheng He, conhecido também pelo nome de infância de Sanbao (…). Às suas ordens encontravam-se 208 embarcações, com 27.800 homens a bordo. Os barcos de maiores dimensões tinham 146 metros de comprimento e 60 de largura: cada um podia transportar um milhar de passageiros, para além de dispor dos meios técnicos mais avançados para a época. Nenhum país europeu estava em condições de competir com a China de então pela qualidade daqueles nove mastros, das cartas náuticas e das bússolas de bordo.
Para além das tripulações e dos soldados, a frota de Zheng He transportavaum exército de cientistas e intérpretes, de médicos e de meteorologistas. A expedição de 1405 serviu para explorar os mares do Sul da China até à ilha de Java (Indonésia) e do Sri Lanka.
Para Zheng He, tratou-se apenas duma primeira prova. Ao longo dos vinte e oito anos seguintes, a Armada chinesa zarpou umas boas oito vezes em direcção ao Ocidente: do lémen ao Irão, da Somália a Meca, o império chinês alargou desmesuradamente os seus conhecimentos e a sua influência.
Um controverso best-selleranglo-americano, da autoria do historiador naval e antigo oficial da Marinha Britânica, Gavin Menzies, 1421: The l'ear China Discovered the World, (ed. Portuguesa da D. Quixote) sustenta que Zheng He não navegou apenas em direcção a Oeste, e que as suas façanhas foram ainda mais clamorosas que o que se julgava. Menzies afirma ter recolhido provas que demonstram que o eunuco almirante atingiu com a sua frota a América sessenta anos antes de Colombo ter desembarcado nas Caraíbas. Um forte argumento a favor desta tese,segundo Menzies, é a descoberta, por parte dos portugueses, em 1424, duma carta geográfica da América de origem chinesa (…).
As teorias de Menzies sofrem uma contestação tal que o governo de Pequim mantém uma distância prudente, embora simpatize com o perito naval anglo-saxónico. «A ideia de que os chineses tenham descoberto a América antes de Colombo», declara o ministro Xu, «encontra-se ainda dentro do âmbito da investigação académica, e até ao momento não se chegou a conclusões unânimes».
A questão de quem tenha de facto descoberto a América pode permanecer em suspenso. Aquilo que conta, actualmente, é a decisão do governo de Pequim de investir generosamente nas celebrações em honra de Zheng He «dentro do espírito do patriotismo, da amizade entre os povos e na navegação científica», nas palavras do ministro da Informação. «As suas viagens ao Ocidente demonstram que naquela época a China possuía a tecnologia mais avançada, e contribuem para recordar a sabedoria e a coragem do povo chinês em todas as épocas.» Os historiadores ocidentais não contestam o facto de que a China do século XV se encontrava mais avançada, quer em termos de desenvolvimento económico, quer em termos científicos. A descoberta orgulhosa das façanhas de Zheng He constitui também o reflexo da opinião que a China alimenta actualmente de si própria: da conquista do espaço aos recordes olímpicos, da modernização económica à invasão dos mercados estrangeiros, todas as metas se encontram ao seu alcance. Se nos anos 50 Pequim ambicionava assumir a liderança dos países do Terceiro Mundo na coligação dos «não-alinhados», hoje em dia compete na série A: o objectivo mais próximo é ultrapassar o PIB da Alemanha e do Japão, para em seguida apontar o alvo aos Estados Unidos.
(…)
Tal como na época do grande almirante, que viveu seis séculos atrás, a China mostra-se pronta a renascer enquanto potência naval, apagando séculos de humilhação e de subalternização relativamente aos «impérios marítimos», em primeiro lugar o britânico, depois do japonês e por fim o norte-americano. (…)
Da orgia de retórica destaca-se a voz sóbria do historiador Xin Yuan'ou da Universidade ]iaotong, de Xangai. A verdadeira motivação da primeira viagem de Zheng He, esclarece Xin, prendia-se com o facto de a dinastia Ming estar prestes a sucumbir sob o assédio terrestre dos exércitos de Tamerlão, o imperador turco-mongol que conquistara grande parte da Ásia. O almirante foi enviado por mar na busca desesperada de aliados que fossem em socorro do império chinês, então próximo do fim.
A sorte foi benévola com os Ming: Tamerlão morreu repentinamente em 1405, no momento preciso em que acabara de preparar os detalhes finais do plano de invasão da China. Apenas depois de ter sido liberto como por milagre da missão mais urgente de salvar o seu imperador, Zheng He usou a Armada naval para explorar o mundo sem objectivos de poder nem de lucro.
Federico Rampini, in Il secolo Cinese
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(continua)
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2 comentários:

Ruvasa disse...

É assim o Mundo. Os investigadores não param de nos surpreender. De qualquer forma, nada ofusca o brilho dos descobrimentos portugueses.

Um abraço

AAlves

Ruvasa disse...

Viva, Alves!

Claro que não!

Por todas as razões e mais estas:

1 - A teoria é muito discutível. Tem imensos pontos fracos. Aquela de ele ter saído de "casa" com um intuito e, depois de essa intenção ter deixado de existir, ter resolvido, então, dar uma volta pelo mundo, é de morrer a rir...

2 - Então, fizeram tais maravilhas (um eunuco, hein?), durante 600 anos, estiveram calados e só agora, que estão no caminho de se tornar uma superpotência e lhes convém um, certo beckground, é que surge a teoria?...

No entanto, não ponho completamente de parte que tenha havido qualquer coisa. Simplesmente não com essa evidência e grandeza todas.

E po que é que digo que admito ter havido qualquer tipo de empreendimentos no género? É que a forma deferente como os nossos mareantes foram, recebidos tanto na China como no Japão dá a entender que ambos os povos tinham já uma noção do valor de uma tal empresa.

Só quem tem a noção das coisas consegue vislumbrar o valor alheio e, sem peias, o reconhecer.

Daí, porém, à rocambolesca história do eunuco que sai de casa com uma missão e só porque ela deixou de ser necessária, resolve dizer para os seus botões:

- Bem, já que estamos aqui e nada mais há para tratar, façamos um cruizeirito pelo mundo...

não resiste à menor análise com uma pontinha de lucidez.

Que cada qual puxe a brasa á sua sardinha, tudo bem, mas nada de dar cabo da sardinha e de apagar a brasa, porra!, porque, caso contrário, lá se vai tudo à viola.

O que interessa é que nós temos a honra de sermos descendentes de uma pléiade de homens que esta geração parece não merecer.

Dentro de dias - amanhã mesmo, talvez - publicarei um post em que ficará evidenciado, para muitos que por aí "pescadeiam" a torto e a direito, mas sem saberem do que falam, de que cepa eram feitos os nossos ancestrais, de que muito me honro de ser "neto".

Abraço

Ruben