Os portugueses têm de salvar-se de si próprios, para salvarem Portugal

quinta-feira, 15 de março de 2007

942. A gripe extemporânea

- Ei, Manel, que grande gripe arranjaste! – Francisca, mulher do Manel, alarmou-se quando o cara-metade lhe apareceu em casa, completamente engripado, quase sem se ter de pé, com uma temperatura corporal que devia fazer inveja aos altos fornos da antiga Siderurgia do Seixal.

- Deixa-me cá, mulher, deixa-me cá, que estou feito num farrapo!... – respondeu o anasalado sofredor.

- Que raio de vida! – voltou ela – Isto até parece de propósito!

- De propósito?! Por que razão dizes isso, Francisca? – quis ele saber.

- Ora, ora. Então, agora que estávamos a recuperar do tremendo rombo nas finanças que tivemos com o casamento da nossa filha, é que te apareça uma treta dessas? – impacientou-se a mulher.

- Eh pá, rapariga! Sabes bem que estas coisas são assim mesmo. Aparecem sem avisar...

- Pois sim, pois sim… – Francisca mostrava-se cada vez mais aborrecida com o contratempo.

- Pois claro! Ninguém tem culpa por, de repente, lhe aparecer uma gripe. Além disso, é fruta da época!... – justificou-se ele, sem mesmo ter consciência de que não havia motivos para justificações. No entanto, com a mulher, era preciso estar-se sempre na defensiva...

- Bem, não tem culpa, uma ova! – insurgiu-se ela, deixando o tom mais ou menos moderado em que a conversa decorrera até aí, e entrando pela parte da “ignorância” pura e simples”.

- Uma… ova?! Hom’essa! – gaguejou ele. Mas logo se recompôs e, depois de 53 espirros seguidos e de umas dezenas de “cof cof cofs”, ainda mais seguidos, retrucou: - Então achas que tenho culpa, é isso?

- Claro que tens. E muita! – ela voltou à carga – Não tens cuidado nenhum. Andas ao frio e à chuva, como se fosse primavera alta… Vocês, os homens, são uns perfeitos palermas. Depois, nós é que temos que resolver as encrencas, não é assim?...

- Ó mulher de Deus! Que é que te deu? – encolheu-se ele, receoso da diatribe dela, mas, assim mesmo, não deixando de julgar-se vítima e não culpado.

Parecendo que lhe adivinhava o pensamento (e claro que adivinhava, ou não fossem eles casados há quase 40 anos...), ela retrucou:

- O que é que me deu? A mim, nada! Deu-te a ti, sim, para estares engripado e a entender que, coitadinho, não tens culpa nenhuma. Foi isso que te deu. Tal não está o mariola, hein?

- Mariola?! Mas tu ensandeceste ou quê, mulher? – o pobre coitado estava pasmado – Mariola, eu? Só porque apanhei uma gripe?...

- Não. Não és mariola por teres apanhado uma gripe – esclareceu ela – És um mariola e dos grandes, sim, por teres adoecido agora, em plena época alta das gripes e doenças correlativas…

- Doenças correlativas?!... – o homem estava a passar-se mesmo.

- Sim, gripes e doenças correlativas próprias desta época, quando sabes perfeitamente que só podes ter maleitas dessas lá mais para o Verão.

- Lá mais para o Verão?! – Os olhos do marido arregalaram-se de estupefacção – Mas, porquê, Francisca e santo Deus, porquê?

- Por uma razão simples – Ela estava a tentar acalmar-se para melhor se explicar. – Então não vês quem agora que a época das gripes e afins está alta, os preços dos medicamentos estão altos também…

- Bem, lá isso… - ia ele a concordar, mas logo foi interrompido por ela:

- … pelo que devias ter o bom senso de aguentar mais um ou dois meses, por que chegasse o Verão, portanto, fora da época das gripes e outras assim – foi ela explicando - porque então os preços baixarão muito.

- Baixarão muito? – o homem estava cada vez mais perplexo. – Onde é que já se viu uma coisa assim?...

- Não se viu, mas vai-se ver, homem dum raio! – abespinhou-se Francisca – Não estás a par das notícias? Não sabes que o governo vai permitir que as farmácias entrem em saldos?

- Ora…

- Qual ora, qual quê! – impacientou-se ela – Só se entra em saldos por remanescente de stock e por ter passado a moda, ou seja, estar-se fora da época própria, não é assim?

- Claro! – concordou ele.

- Então, já vês. Se o governo autoriza os saldos e as farmácias os irão fazer, só pode ser por os produtos remanescentes terem ficado em stock, passada a época própria.

-Sim… - disse ele, a medo.

- Logo, no Verão – prosseguiu ela - os antigripais e adjacentes, estarão muito mais baratos. E então é que é de aproveitar… – pequena pausa, para causar efeito – Ou não será assim?

Tendo atingido os 45º de temperatura corporal e os 65º de aquecimento cerebral devido ao impacte da notícia, Manel, contorceu-se num esgar, ergueu-se de um salto, aflito, pinoteou duas vezes no ar e caiu redondo no chão, completamente desacordado.

Felizmente que o amoníaco não fazia parte da lista dos “medicamentos” a saldar, pelo que havia lá em casa, a todo o momento, sempre um frasquinho, preparado para situações de emergência. Assim, Francisca pôde correr a buscá-lo, dando-o a cheirar ao mais-que-tudo que, depois de meia dúzia de tentativas, lá recuperou da tremenda da aflição…

(Esta história horrenda e de deixar qualquer um meditabundo e “escarrafouçado” estava a precisar de ilustração a condizer. O autor esteve para a fazer, mas, pensando melhor, resolveu arriscar e esperar que a sua amiga Maria João, mui celebrada artista plástica da nossa praça, tenha, também na sua área, época de saldos e, desse modo, lhe ofereça um desenhinho porreiro, para a ilustração.

Se não houver saldos, por se estar ainda fora da respectiva época, paciência, mas…)


NB.- Como a Maria Jioao está assoberbada, tive que ser eu próprio...
...

14 comentários:

Isabel Filipe disse...

hehehehe ...
soberbo o teu texto ...

tenho de dizer lá em casa ao meu marido ... ele que se atreva a ter uma gripe fora do verão .... leva com o rolo da massa ....

bjs

H. Sousa disse...

E a tintura de iodo?
Gostei da história, muito bem engendrada e surrealista como o nosso governo.

Ruvasa disse...

Viva, Henrique!

O surrealismo dfa histária é nada comparado com o do governo de que padecemos, não concorda?

Abraço

Ruben

Ruvasa disse...

Viva, Isabel!

Isso, isso! Chega-lhe.
Ao governo de que padecemos, claro; não ao teu marido...

Beijinho

Ruben

H. Sousa disse...

Sim, acho que não lhe chega aos calcanhares...

Agnelo Figueiredo disse...

Pois eu acho uma "moca".
Saldos de antibióticos...
Promoção de estatinas...
Campanha de ansiolíticos...

Tudo muito moderno, cool!

E, além do mais, segue as "boas práticas" que nos chegam dos países evoluídos...

Ruvasa disse...

Viva, Agnelo!

Tudo bem, mas é capaz de me esclarecer uma dúivida metafísica que me fica?

Para que é que lhe serve - a ele - a "moca"?

Abraço

Ruben

Agnelo Figueiredo disse...

Para lhe dar na "mona"?

Anónimo disse...

Opsssss...só agora li o final Ruben!
Sorry mas o post era tão cooooooooomprido que nã reparei no final...Eheheheheeh!

Olha, eu de momento ando pelos cabelos com 'encomendas' amigo.

ai ai não te zangues comigo tá bem?

beijinho Grande!

Ruvasa disse...

Viva, MJoão!

Está bem!

Beijinho

Ruben

Anónimo disse...

Eheheheh...e ficou óPtimo o CArtaz!!

Saldos na farmácia socratina hein?!...AHAHAHAHAH!!!

Beijinho

Ruvasa disse...

Viva, MJoão!

Atenção que eu ecrevi "socratina" não "socretina", hein?!

Beijinho

Ruben

Isabel Filipe disse...

parabéns pelo cartaz ....

ficou 5 estrelas

bjs e boa semana

Ruvasa disse...

Viva, Isabel!

É muita amabilidade tua, mas também não exageres.

Sei fazer nelhor, e aquilo foi feito em cinco minutos, a correr.

Beijinho, de qualquer modo ;-)

Ruben