Os portugueses têm de salvar-se de si próprios, para salvarem Portugal

segunda-feira, 25 de junho de 2007

1149. "Um mar no deserto"

Mão amiga fez-me chegar o texto abaixo transcrito, publicado no jornal Público, em 19 Junho 2007.

Pelo interesse de que se reveste e principalmente pelas verdades que deita em cara a uns quantos governantes arrogantes, autocráticos e pouco esclarecidos (como, por via de regra, costumam ser...) e a mais uns quantos imbecis que, embora sem as responsabilidades de quem governa, ajudam à "festa", não resisto a trazê-lo ao conhecimento de quem me lê:

Um mar no deserto

Ao contrário do que se pensa, o Ministro Mário Lino não cometeu uma “gaffe”, quando se referiu à Margem Sul como sendo “um deserto”.

Na sua candura, o Ministro deu voz ao (pre)conceito, velho como a nação, de que “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. Tentemos explicar melhor esta vetusta e elitista tradição, que, a meu ver explica a macrocefalia nacional e em grande medida o nosso subdesenvolvimento.

Na sua mentalidade reaccionária e provinciana, Salazar almejava um país, rural e ignorante, mais contido do que governado por uma administração burocratizada e repressiva.

Profundamente desconfiado com a industrialização do país, - porque, com razão, a sabia associada ao surgimento do proletariado - aceitou a estritamente necessária, entregando-a aos barões do regime, que aliás controlava e protegia e situou-a em território inimigo, isto é, na Margem Sul.

Consta que foi isso que anunciou na única vez que visitou Setúbal no âmbito da exposição regional, nos anos trinta. Doravante a mais bela região do país tinha o destino traçado: indústria pesada, química e extractiva, fortemente poluente, trabalho extensivo mal pago, actividades tradicionais sequelares porque incompatível com a contaminação industrial persistente, especulação imobiliária desenfreada, baixa qualidade de vida.

Foi esta região, precisamente a mais sofrida, a que mais expectativa criou com o 25 de Abril e a que mais se frustrou quando a esperança se gorou.

Afinal, o paradigma era para manter. A mesma sobranceria e arrogância centralista e centralizadora dos governos, a mesma conivência dos seus agentes locais.

Características naturais extraordinárias que fariam a riqueza de qualquer nação, desbaratadas numa voragem de lucro fácil e imediato, ao arrepio do mais elementar respeito pela natureza e pelo ordenamento do território.

Uma região fértil, um estuário detentor de uma biodiversidade espantosa, uma serra e um enquadramento paisagístico maravilhosos, uma história e um património de 5.000 anos reduzidos a um repositório de resíduos industriais.

Um nascente e promissor “mercado de resíduos”, como se lhe referiu o Ministro do Ambiente, imagine-se, quando veio inaugurar mais uma lixeira no Parque Industrial da Sapec.

Um “mercado de resíduos” por cima do maior aquífero da Península Ibérica, precisamente quando um dos maiores problemas ecológicos actuais da humanidade, é a carência de água potável.

Um Parque Natural, como o da Arrábida, que faz parte de uma imensa baía, que constitui o maior manancial do Atlântico Norte, onde o governo socialista deste país alega a utilidade pública, precisamente para prescindir de um estudo de impacte ambiental e de uma consulta pública, esses sim institutos que acautelam o interesse público, com o objectivo de aí queimar Resíduos Industriais Perigosos, numa absurda fábrica de cimento que já de lá devia ter saído há muitos anos.

Os nossos intelectuais, particularmente activos enquanto jovens, e agora cada vez mais mediatizados, bem se desdobram em cargos e fóruns onde se discute o aquecimento global, enquanto, em casa, a contaminação industrial lhes entra pela porta do quintal, enquanto outros, também em vias de institucionalização, celebram os poetas mortos, não vão os vivos dizer alguma inconveniência.

Os partidos do chamado arco governativo impõe-nos líderes locais de opereta, sendo os mais proeminentes recrutados como administradores ou funcionários dos industriais menos escrupulosos, cujas campanhas políticas são por estes apoiadas e subsidiadas.

E, no fim de contas, a estratégia é tão clara, que ninguém a parece ver, de tão óbvia que é. Há um dedo gigantesco a apontá-la, mas os interesses e os poderes fácticos insistem em não o enxergar.

Setúbal necessita de valorizar decisivamente aquilo que tem de melhor e mais genuíno que é a sua natureza privilegiada e recusar este paradigma industrial obsoleto e voraz.

Setúbal é uma porta magnífica do oceano. Mas é necessário conhecê-la, estudá-la e investigá-la, tirando o melhor partido das suas riquezas. Elas estão aí, praticamente gratuitas, e para todos; é só não as corromper em benefício dos mesmos de sempre.

Até o actual Presidente da República Cavaco Silva, que nos visitou no âmbito do 10 de Junho o reconheceu, quando disse: “… o património oceânico é único e de recursos geológicos, minerais, biotecnológicos, energéticos que são muito relevantes”.

Afinal e apesar do Ministro para além do deserto há sempre o mar.

João Bárbara

Médico - Setúbal

Gentileza de Pedro Sérgio

...

2 comentários:

Isabel Magalhães disse...

Caro Ruben;

Que mais se pode acrescentar a palavras tão certeiras?

Conheço bem e venero a região, a Arrábida do Sebastião da Gama, o Rio Azul, Setúbal, Troia, Comporta...




Boa semana.

Um abraço.
I.

Ruvasa disse...

Viva, Isabel!

Uma das razões - não a única nem a principal, claro - por que decidi transcrever o artigo é a de que, até este momento não tinha lido ninguém, que não eu próprio, acerca destes assuntos, de forma tão pública e geral. E eu não sou, como todos sabemos, ninguém no panorama político e social, primeiro porque não tive apetência nem - principalmente - disponibilidades profissionais, quando para isso dispûs de oportunidades; depois, porque me indispûs com as gentes da política que politicam mais para se servirem do que para servir.

É que existe um alheamento que parece concertado, no sentido de que, ainda que nos façam mal, a gente não se revolta, porque isso é para a gentalha. Fiz-me entender?

Resultado: ao ver este artigo, exultei. Parece que há alguém que pensa como eu e também não teme dizê-lo alto e bom som.

Há parágrafos no texto a que só falta o retrato ao lado...

Abraço

Ruben