Os portugueses têm de salvar-se de si próprios, para salvarem Portugal

quarta-feira, 15 de julho de 2009

2437. Tertúlia Virtual - 15 Julho 2009


A minha pátria é a língua portuguesa

Fernando Pessoa



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A frase de Pessoa, nascida de um incontível impulso, decorrência longínqua da leitura de um dos magnificentes textos de Vieira, o jesuíta que manipulava a língua mãe como ninguém mais após si, resume bem todo o sentimento que a bela língua portuguesa desperta em quem a conhece, a cultiva, tenta que não seja deturpada.


Porque deturpar não é acrescentar-lhe novos termos, novas cambiantes, novos significados e amplitudes, novas profundidades espacial e temporal, o que só a enriquece. Deturpá-la é pretender, consciente ou inconscientemente, amputá-la da sua riqueza, da sua tremenda expressividade, do seu inigualável humanismo.


Não será da Terra o império que sucederá ao dos Assírios, dos Persas, dos Gregos e dos Romanos, que esses o foram da matéria. Por isso, chegada a sua hora, todos tiveram fim. O Quinto Império será, como preconiza Vieira, o de Cristo e dos Cristãos e não da terra, mas sim do reino dos Céus e, também contrariamente aos outros, eterno.


Porém, haverá um Quinto Império terreno. Há-de ser o da Língua Portuguesa. O império a que comummente nos referimos e bem demonstrativo da capacidade de miscigenação, do cosmopolitismo dos portugueses e seus descendentes e derivados.


Quanto mais e maior consciência da enorme força da Língua Portuguesa houver mais rapidamente ela se afirmará em todo o mundo e se tornará a língua do Quinto Império, o definitivo em termos terrenos.


Porque só a Língua Portuguesa dispõe das características necessárias e suficientes para assumir tal papel de supremacia, com plena aceitação tanto por elites como por camadas mais populares.


Trata-se de uma língua complexa, sim, mas a que, talvez por isso mesmo, não faltam expressões para descrever em termos justos e precisos, qualquer situação de vida, qualquer sentimento, qualquer pensamento, qualquer imaterialidade.


Na verdade, não há língua que se lhe iguale. E essa sua tremenda vitalidade, deve-a, em primeiro lugar, à etimologia latina, a língua das línguas, a língua que, ainda que morta, perdura ad saecula saeculorum. Outras, como o espanhol, o francês, o italiano e o romeno têm também essa derivação, mas a faltou-lhes sempre a disponibilidade, a vontade, a humildade, o cosmopolitismo para se enriquecerem com novos termos e até construções frásicas recolhidas de outras proveniências, bebidas, sem complexos, de até meros dialectos.


São essas suas capacidades de absorção e de subsequente disseminação, aliadas às restantes características anteriormente apontadas, que dela fazem única no mundo, ainda que a não mais falada entre os povos. Por enquanto...


Não tem a capacidade de síntese da língua inglesa em uso americano ou australiano, mas tem, a título de compensação altamente mais favorável, a ductilidade que a torna tão generalizadamente aceitável e de uma riqueza absolutamente inigualável. Não haverá língua no mundo com tamanha diversidade de descrições atinentes a um facto, a uma situação, a uma qualidade, a um sentimento.


No entanto, a Língua Portuguesa só terá toda essa pujança, enquanto for uma forma de expressão livre, não sujeita a baias e regras estultas que apenas terão como resultado amputarem-na de toda a sua inconfundível vitalidade.


Pretender domesticá-la, uniformizá-la, torná-la como as restantes, incapaz de responder às necessidades, anseios e idiossincrasias dos povos que dela se servem para se exprimirem acerca dos mais variados assuntos, é, para além de criminoso, acto de completa estultícia. E mais ainda se a versão que à força se pretende fazer vingar é das que mais – se não mesmo a que mais – se afastam do seu devir etimológico.


O Português que se fala em Lisboa não é precisamente o mesmo que se fala no Brasil, nem o mesmo que se fala em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, na Guiné, em S. Tomé e Príncipe, em Timor, em Macau, no Sudoeste da Índia, no Sudeste Asiático, nas diversas comunidades de falantes da língua portuguesa das mais remotas partes do mundo. Não é, sequer, o mesmo português que se fala no Alentejo ou em Trás-os-Montes ou em Coimbra ou em Faro. Nem o Português do Rio de Janeiro o mesmo que se fala em Fortaleza ou em Porto Alegre ou na Baía ou em Campo Grande ou em Manaus. E, no entanto, nessa diversidade de "Português", se expressam, se explicam, se entendem e até se desentendem entre si inúmeros povos e comunidades disseminados por esta bola em perpétuo movimento em que vivemos.


Todos são a Língua Portuguesa na sua expressão mais universalista. A Língua Portuguesa na sua máxima ductilidade, com o objectivo de servir os povos. E é aí, principalmente aí, que ela é imbatível, não tendo concorrentes à altura. Assemelha-se-lhe um pouco o Espanhol, ou melhor, o Castelhano - já que o Espanhol é língua que não existe ou existiu - mas nem de perto nem de longe com as mesmas características e versatilidade.


E a que se devem essas suas características? Muitos serão os factores que as determinam, certamente, mas despicienda não será a circunstância de o povo que a disseminou pelos quatro cantos do globo ter sido capaz de se integrar tão profundamente com os outros povos que foi encontrando e a que foi aderindo sem complexos e sem peias, par inter pares, como nenhum outro povo "descobridor" o foi. E, por isso, o aforismo de que, tendo Deus criado brancos e pretos, amarelos e vermelhos, o português completou a obra miscigenando o mestiço que está a caminho de se tornar a etnia dominante, por recolher, em si, as características gerais dos povos do globo, em ordem a uma harmonia que se pretende universal.


Na verdade, Pessoa estava certo quando descobriu o belíssimo conceito de que a sua pátria - a nossa pátria - é a Língua Portuguesa.


Pode, a um primeiro e apressado relance, pensar-se que não é assim. Mas bastará um instante de reflexão para, de imediato, se concluir que efectivamente o é e nem de outro modo poderia ser.


Quem é que, vivendo no estrangeiro da Língua Portuguesa ou lá estando de passagem acidental, não teve ainda a percepção de tudo quanto fica dito e mais ainda das potencialidades congregadoras da sua língua materna? Bastará que se passe uma semana sem falar português, sentindo-se efectivamente no estrangeiro, para que, subitamente ouvindo alguém articular a nossa língua, se regressar, de supetão e com uma sensação de indizível aprazimento e conforto, à pátria que nos abençoa.


Na verdade, apenas quem, lá por fora e quanto mais longinquamente melhor, rodeado de gente de outras falas, subitamente ouve linguajar em português, com ou sem sotaque, consegue, em toda a sua extensão, aperceber-se dessa força de união indestrutível que só a língua comum pode proporcionar. Por sentir o recuperar do seu próprio “eu”, da sua intransmissível personalidade, da sua bem marcada identidade face ao mundo em redor. Por regressar à pátria tão amada e protectora, a Língua Portuguesa.


É certo que bandeiras, hinos e outros símbolos artificialmente criados, pretendem materializar uma ideia de nação que se pretende um todo indivisível, uma casa em que todos sentem ter lugar próprio.


No entanto, a nossa pátria, a nossa verdadeira pátria, que ninguém jamais poderá impor e muito menos algum dia destruir, é a Língua Portuguesa. Tudo o mais, embora muito respeitável e de acarinhar sem tibiezas, são meros adereços que nada mais podem fazer do que reforçar a identidade principal.


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O tema mereceria outro tratamento que, todavia, não teria cabimento neste espaço e nesta hora em que apenas se pretende alertar para uma realidade que à generalidade de quem este laudo ler afecta e certamente interessa. Em outra oportunidade tê-lo-á.


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Entretanto, enquanto a hora não chega, veja mais aqui


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(O texto foi actualizado, pelas 10,15 de 16 Julho 2009, com a introdução do parágrafo que tem início em "E a que se devem essas suas características?", que constava do borrão inicial, mas que, por lapso, não foi incluído na versão original do post)

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