
A minha pátria é a língua portuguesa
Fernando Pessoa
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A frase de Pessoa, nascida de um incontível impulso, decorrência longínqua da leitura de um dos magnificentes textos de Vieira, o jesuíta que manipulava a língua mãe como ninguém mais após si, resume bem todo o sentimento que a bela língua portuguesa desperta em quem a conhece, a cultiva, tenta que não seja deturpada.
Porque deturpar não é acrescentar-lhe novos termos, novas cambiantes, novos significados e amplitudes, novas profundidades espacial e temporal, o que só a enriquece. Deturpá-la é pretender, consciente ou inconscientemente, amputá-la da sua riqueza, da sua tremenda expressividade, do seu inigualável humanismo.
Não será da Terra o império que sucederá ao dos Assírios, dos Persas, dos Gregos e dos Romanos, que esses o foram da matéria. Por isso, chegada a sua hora, todos tiveram fim. O Quinto Império será, como preconiza Vieira, o de Cristo e dos Cristãos e não da terra, mas sim do reino dos Céus e, também contrariamente aos outros, eterno.
Porém, haverá um Quinto Império terreno. Há-de ser o da Língua Portuguesa. O império a que comummente nos referimos e bem demonstrativo da capacidade de miscigenação, do cosmopolitismo dos portugueses e seus descendentes e derivados.
Quanto mais e maior consciência da enorme força da Língua Portuguesa houver mais rapidamente ela se afirmará em todo o mundo e se tornará a língua do Quinto Império, o definitivo em termos terrenos.
Porque só a Língua Portuguesa dispõe das características necessárias e suficientes para assumir tal papel de supremacia, com plena aceitação tanto por elites como por camadas mais populares.
Trata-se de uma língua complexa, sim, mas a que, talvez por isso mesmo, não faltam expressões para descrever em termos justos e precisos, qualquer situação de vida, qualquer sentimento, qualquer pensamento, qualquer imaterialidade.
Na verdade, não há língua que se lhe iguale. E essa sua tremenda vitalidade, deve-a, em primeiro lugar, à etimologia latina, a língua das línguas, a língua que, ainda que morta, perdura ad saecula saeculorum. Outras, como o espanhol, o francês, o italiano e o romeno têm também essa derivação, mas a faltou-lhes sempre a disponibilidade, a vontade, a humildade, o cosmopolitismo para se enriquecerem com novos termos e até construções frásicas recolhidas de outras proveniências, bebidas, sem complexos, de até meros dialectos.
São essas suas capacidades de absorção e de subsequente disseminação, aliadas às restantes características anteriormente apontadas, que dela fazem única no mundo, ainda que a não mais falada entre os povos. Por enquanto...
Não tem a capacidade de síntese da língua inglesa em uso americano ou australiano, mas tem, a título de compensação altamente mais favorável, a ductilidade que a torna tão generalizadamente aceitável e de uma riqueza absolutamente inigualável. Não haverá língua no mundo com tamanha diversidade de descrições atinentes a um facto, a uma situação, a uma qualidade, a um sentimento.
No entanto, a Língua Portuguesa só terá toda essa pujança, enquanto for uma forma de expressão livre, não sujeita a baias e regras estultas que apenas terão como resultado amputarem-na de toda a sua inconfundível vitalidade.
Pretender domesticá-la, uniformizá-la, torná-la como as restantes, incapaz de responder às necessidades, anseios e idiossincrasias dos povos que dela se servem para se exprimirem acerca dos mais variados assuntos, é, para além de criminoso, acto de completa estultícia. E mais ainda se a versão que à força se pretende fazer vingar é das que mais – se não mesmo a que mais – se afastam do seu devir etimológico.
O Português que se fala em Lisboa não é precisamente o mesmo que se fala no Brasil, nem o mesmo que se fala em Angola, em Moçambique,
Todos são a Língua Portuguesa na sua expressão mais universalista. A Língua Portuguesa na sua máxima ductilidade, com o objectivo de servir os povos. E é aí, principalmente aí, que ela é imbatível, não tendo concorrentes à altura. Assemelha-se-lhe um pouco o Espanhol, ou melhor, o Castelhano - já que o Espanhol é língua que não existe ou existiu - mas nem de perto nem de longe com as mesmas características e versatilidade.
E a que se devem essas suas características? Muitos serão os factores que as determinam, certamente, mas despicienda não será a circunstância de o povo que a disseminou pelos quatro cantos do globo ter sido capaz de se integrar tão profundamente com os outros povos que foi encontrando e a que foi aderindo sem complexos e sem peias, par inter pares, como nenhum outro povo "descobridor" o foi. E, por isso, o aforismo de que, tendo Deus criado brancos e pretos, amarelos e vermelhos, o português completou a obra miscigenando o mestiço que está a caminho de se tornar a etnia dominante, por recolher, em si, as características gerais dos povos do globo, em ordem a uma harmonia que se pretende universal.
Na verdade, Pessoa estava certo quando descobriu o belíssimo conceito de que a sua pátria - a nossa pátria - é a Língua Portuguesa.
Pode, a um primeiro e apressado relance, pensar-se que não é assim. Mas bastará um instante de reflexão para, de imediato, se concluir que efectivamente o é e nem de outro modo poderia ser.
Quem é que, vivendo no estrangeiro da Língua Portuguesa ou lá estando de passagem acidental, não teve ainda a percepção de tudo quanto fica dito e mais ainda das potencialidades congregadoras da sua língua materna? Bastará que se passe uma semana sem falar português, sentindo-se efectivamente no estrangeiro, para que, subitamente ouvindo alguém articular a nossa língua, se regressar, de supetão e com uma sensação de indizível aprazimento e conforto, à pátria que nos abençoa.
Na verdade, apenas quem, lá por fora e quanto mais longinquamente melhor, rodeado de gente de outras falas, subitamente ouve linguajar em português, com ou sem sotaque, consegue, em toda a sua extensão, aperceber-se dessa força de união indestrutível que só a língua comum pode proporcionar. Por sentir o recuperar do seu próprio “eu”, da sua intransmissível personalidade, da sua bem marcada identidade face ao mundo em redor. Por regressar à pátria tão amada e protectora, a Língua Portuguesa.
É certo que bandeiras, hinos e outros símbolos artificialmente criados, pretendem materializar uma ideia de nação que se pretende um todo indivisível, uma casa em que todos sentem ter lugar próprio.
No entanto, a nossa pátria, a nossa verdadeira pátria, que ninguém jamais poderá impor e muito menos algum dia destruir, é a Língua Portuguesa. Tudo o mais, embora muito respeitável e de acarinhar sem tibiezas, são meros adereços que nada mais podem fazer do que reforçar a identidade principal.
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O tema mereceria outro tratamento que, todavia, não teria cabimento neste espaço e nesta hora em que apenas se pretende alertar para uma realidade que à generalidade de quem este laudo ler afecta e certamente interessa. Em outra oportunidade tê-lo-á.
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Entretanto, enquanto a hora não chega, veja mais aqui
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(O texto foi actualizado, pelas 10,15 de 16 Julho 2009, com a introdução do parágrafo que tem início em "E a que se devem essas suas características?", que constava do borrão inicial, mas que, por lapso, não foi incluído na versão original do post)
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