Os portugueses têm de salvar-se de si próprios, para salvarem Portugal

domingo, 24 de março de 2013

3128. "Nachtzug nach Lissabon"


Cheguei há pouco a casa. Fomos ao cinema, minha mulher e eu.

Era hábito muito arreigado em nós, em África, quando solteiros e nos primeiros 18 meses do casamento. Até que, envolta numa aura de luz, nos surgiu pela frente a nossa primeira filha. Então, pusemos fim ao hábito e o “cinema” passou a ser desfrutado em casa, com as gracinhas da menina. E dos irmãos, dois, que não tardaram a juntar-se-lhe e foram igualmente umas gracinhas, eles próprios.

Quando acordámos desse sonho, tinham passado vários e largos anos e, pelo meio, uma descolonização que também nós consideramos exemplar, talvez por exemplarmente nos ter deixado sem casa e respectivo trem, sem “tuste”, sem sabermos o que fazer da vida, com três filhos, todos com menos de meia dúzia de anos de idade, e consequente e exemplarmente ainda, nos ter calejado para a vida, de tal forma que a actual crise portuguesa, e as duas que a antecederam, quase nos passe e tenham passado de raspão, embora muito e muito nos atinja e tenham atingido.

Sim, na verdade, quem passou pela descolonização e sobreviveu sem se lamentar, antes cerrando os dentes e porfiando pela vida, durante mais de 15 anos, até sair do descomunal aperto, mesmo passando pela amargura de ver alguns dos seus iguais tombarem sem remédio pela provação sofrida, tem lá medo de uma crisezeca como a que vivemos!


Mas – dizia eu – quando acordámos desse sonho do nascimento e crescimento dos filhos, tinham passado vários e largos anos pelo que o hábito se perdera, até ajudado pela televisão à mão de semear ali em casa. Esporadicamente, muito esporadicamente mesmo, lá fomos uma ou outra vez relembrar os velhos tempos da cinefilia, mas por isso ficámos. Assim, foram os anos passando e, quando demos por nós, já os netos por aí andavam, embora não tenham sido nada expeditos em dar sinais de si, mas expeditos de primeira em reclamar o nosso carinho, a nossa atenção, toda a nossa disponibilidade que se mostre ser aceite.

Foi então que um dia destes fomos ao cinema. Já nem recordamos a que filme. Apenas que nos voltou em força o bichinho de outrora. Passados que são quarenta anos bem medidos!

E recomeçámos. Não já com o mesmo fervor e entusiasmo, que a idade tempera os excessos, mas de forma mais calma, criteriosa e agradável. Vivemos, pois, na ansiedade de estarmos com os netos, na quase amargura de não os afagarmos e estragarmos com mimos mais vezes, na rotina acolhedora da nossa vivência em comum, nos passeios pela tardinha, nas idas ao cinema, enfim! Vidas simples que os simples vivem.

A de hoje, foi, pois, uma tarde de cinema.

Fomos ver “Comboio nocturno para Lisboa” (“Night train to Lisbon”, na versão original), protagonizado por Jeremy Irons, Charlotte Rampling e breve aparição de Nicolau Breyner.
O script é baseado no romance do escritor suíço, Pascal Mercier (pseudónimo de Peter Bieiri) “Nachtzug nach Lissabon” que comprámos há cerca de um ano mas que eu tardava em ler, pelo facto de a primazia ter sido dada à mulher cá de casa – que desde então me moía o juízo para que eu o lesse –, mas igualmente porque, embora desde sempre tendo o hábito de ler dois ou três livros em simultâneo, o faço agora com mais demora e maior e melhor mastigação. E ainda porque o tempo não chega para tudo – quem foi o sábio (só pode ter sido um sábio…) que disse que aquilo que não se faça durante a vida activa, não se fará na retirada, por falta de tempo, tal o “atarefamento” que nos assalta? – e no tudo incluem-se também uns escritos ligeiros, por aqui e por ali, para acervo a utilizar mais tarde, que, espera-se, não se atrase demasiado, por correr o risco de se tornar inexequível.

Há dias, porém, quando fiquei com apenas um outro em mãos (de que falarei daqui por uns tempos, julguei ser o tempo adequado para o abordar. E assim fiz. Mastigando, como venho fazendo ultimamente, com grande deleite.

Eis se não quando, nem de propósito, surge o filme… Embora ainda não tenha terminado a leitura do livro, lá fomos ao cinema, minha mulher empolgada, eu expectante.

Estamos regressados.

Por aqui me fico. Apenas me limito a sugerir. Não deixe de comprar, pedir emprestado, roubar mesmo, mas leia a obra; nem tão pouco de comprar bilhete ou fintar o porteiro da Lusomundo, mas veja o filme. Para um a para outro, vá de mente aberta, que é a melhor forma de se ir seja para o que for.

Ah, sim! Não precisa de agradecer.

RVS 2013Março23
(publicado no Facebook na mesma data)

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