- Ei, Manel, que grande gripe arranjaste! – Francisca, mulher do Manel, alarmou-se quando o cara-metade lhe apareceu em casa, completamente engripado, quase sem se ter de pé, com uma temperatura corporal que devia fazer inveja aos altos fornos da antiga Siderurgia do Seixal.
- Deixa-me cá, mulher, deixa-me cá, que estou feito num farrapo!... – respondeu o anasalado sofredor.
- Que raio de vida! – voltou ela – Isto até parece de propósito!
- De propósito?! Por que razão dizes isso, Francisca? – quis ele saber.
- Ora, ora. Então, agora que estávamos a recuperar do tremendo rombo nas finanças que tivemos com o casamento da nossa filha, é que te apareça uma treta dessas? – impacientou-se a mulher.
- Eh pá, rapariga! Sabes bem que estas coisas são assim mesmo. Aparecem sem avisar...
- Pois sim, pois sim… – Francisca mostrava-se cada vez mais aborrecida com o contratempo.
- Pois claro! Ninguém tem culpa por, de repente, lhe aparecer uma gripe. Além disso, é fruta da época!... – justificou-se ele, sem mesmo ter consciência de que não havia motivos para justificações. No entanto, com a mulher, era preciso estar-se sempre na defensiva...
- Bem, não tem culpa, uma ova! – insurgiu-se ela, deixando o tom mais ou menos moderado em que a conversa decorrera até aí, e entrando pela parte da “ignorância” pura e simples”.
- Uma… ova?! Hom’essa! – gaguejou ele. Mas logo se recompôs e, depois de 53 espirros seguidos e de umas dezenas de “cof cof cofs”, ainda mais seguidos, retrucou: - Então achas que tenho culpa, é isso?
- Claro que tens. E muita! – ela voltou à carga – Não tens cuidado nenhum. Andas ao frio e à chuva, como se fosse primavera alta… Vocês, os homens, são uns perfeitos palermas. Depois, nós é que temos que resolver as encrencas, não é assim?...
- Ó mulher de Deus! Que é que te deu? – encolheu-se ele, receoso da diatribe dela, mas, assim mesmo, não deixando de julgar-se vítima e não culpado.
Parecendo que lhe adivinhava o pensamento (e claro que adivinhava, ou não fossem eles casados há quase 40 anos...), ela retrucou:
- O que é que me deu? A mim, nada! Deu-te a ti, sim, para estares engripado e a entender que, coitadinho, não tens culpa nenhuma. Foi isso que te deu. Tal não está o mariola, hein?
- Mariola?! Mas tu ensandeceste ou quê, mulher? – o pobre coitado estava pasmado – Mariola, eu? Só porque apanhei uma gripe?...
- Não. Não és mariola por teres apanhado uma gripe – esclareceu ela – És um mariola e dos grandes, sim, por teres adoecido agora, em plena época alta das gripes e doenças correlativas…
- Doenças correlativas?!... – o homem estava a passar-se mesmo.
- Sim, gripes e doenças correlativas próprias desta época, quando sabes perfeitamente que só podes ter maleitas dessas lá mais para o Verão.
- Lá mais para o Verão?! – Os olhos do marido arregalaram-se de estupefacção – Mas, porquê, Francisca e santo Deus, porquê?
- Por uma razão simples – Ela estava a tentar acalmar-se para melhor se explicar. – Então não vês quem agora que a época das gripes e afins está alta, os preços dos medicamentos estão altos também…
- Bem, lá isso… - ia ele a concordar, mas logo foi interrompido por ela:
- … pelo que devias ter o bom senso de aguentar mais um ou dois meses, por que chegasse o Verão, portanto, fora da época das gripes e outras assim – foi ela explicando - porque então os preços baixarão muito.
- Baixarão muito? – o homem estava cada vez mais perplexo. – Onde é que já se viu uma coisa assim?...
- Não se viu, mas vai-se ver, homem dum raio! – abespinhou-se Francisca – Não estás a par das notícias? Não sabes que o governo vai permitir que as farmácias entrem em saldos?
- Ora…
- Qual ora, qual quê! – impacientou-se ela – Só se entra em saldos por remanescente de stock e por ter passado a moda, ou seja, estar-se fora da época própria, não é assim?
- Claro! – concordou ele.
- Então, já vês. Se o governo autoriza os saldos e as farmácias os irão fazer, só pode ser por os produtos remanescentes terem ficado em stock, passada a época própria.
-Sim… - disse ele, a medo.
- Logo, no Verão – prosseguiu ela - os antigripais e adjacentes, estarão muito mais baratos. E então é que é de aproveitar… – pequena pausa, para causar efeito – Ou não será assim?
Tendo atingido os 45º de temperatura corporal e os 65º de aquecimento cerebral devido ao impacte da notícia, Manel, contorceu-se num esgar, ergueu-se de um salto, aflito, pinoteou duas vezes no ar e caiu redondo no chão, completamente desacordado.
Felizmente que o amoníaco não fazia parte da lista dos “medicamentos” a saldar, pelo que havia lá em casa, a todo o momento, sempre um frasquinho, preparado para situações de emergência. Assim, Francisca pôde correr a buscá-lo, dando-o a cheirar ao mais-que-tudo que, depois de meia dúzia de tentativas, lá recuperou da tremenda da aflição…
(Esta história horrenda e de deixar qualquer um meditabundo e “escarrafouçado” estava a precisar de ilustração a condizer. O autor esteve para a fazer, mas, pensando melhor, resolveu arriscar e esperar que a sua amiga Maria João, mui celebrada artista plástica da nossa praça, tenha, também na sua área, época de saldos e, desse modo, lhe ofereça um desenhinho porreiro, para a ilustração.
Se não houver saldos, por se estar ainda fora da respectiva época, paciência, mas…)
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NB.- Como a Maria Jioao está assoberbada, tive que ser eu próprio...
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